Os judeus na Viena do fin-de-siècle
Por volta de 1900, uma extraordinária geração de pensadores e artistas, em sua maioria judeus, transformou Viena num dos maiores centros culturais do mundo.
A capital do multiétnico Império Austro-húngaro viveu intensamente a transição entre os dois séculos, período caracterizado pela efervescência e transformação intelectual e científica, assim como política e ideológica, que teria sérios desdobramentos na história européia das décadas subseqüentes, até a eclosão da 2ª Guerra Mundial.
No fin-de-siècle, como é chamado o período, apesar de a cidade ser o baluarte do conservadorismo dos Hasburgo, transformou-se em um dos epicentros mundiais do modernismo e da criatividade. Num curto intervalo de tempo, foram reformuladas tradições e fundadas escolas de pensamento. Enquanto isso, a sociedade vienense vivenciava a rápida ascensão e queda do liberalismo, esta transição política colocou em evidência a existência de outra Viena. A cidade era um verdadeiro caldeirão de ódio e preconceito, que produziu uma ideologia firmemente calcada no anti-semitismo. Não podemos esquecer que era a única capital européia a ter um governo anti-semita no poder. Ademais, foi lá que Hitler moldou sua nefasta visão sobre os judeus e as "soluções" que seriam postas em prática para tratar do "problema".
Modernismo e participação judaica
Damos o nome de "modernismo" a um movimento genérico que afetou a vida cultural e artística do mundo ocidental. Baseava-se na idéia de que as formas "tradicionais", tanto das artes como da organização social, haviam-se tornado ultrapassadas e, portanto, havia que se criar uma nova cultura. Apesar de não ter sido um fenômeno exclusivamente vienense, em nenhum outro lugar o modernismo foi tão palpável como na capital austríaca, de onde fazia flagrante oposição à cultura de cunho católico-jesuítico, com manifestações barrocas, ditada pela aristocracia e pelos Habsburgo.
A partir de 1960, com a publicação da obra Em Viena fin-de-siècle: política e cultura, de autoria de Carl E. Schorske, professor de História da Universidade de Princeton, desponta o interesse pelo período. Na medida que se evidenciava que as mais importantes personalidades culturais e científicas atuantes na época eram judeus, aumentava o interesse sobre a extensão de sua contribuição para o fenômeno que os historiadores chamaram de "modernidade vienense".
Em 1989, Steven Beller, respeitado acadêmico, publicou um estudo sobre o assunto. Em seu livro Vienna and the Jews - 1867-1938, a Cultural History, Beller analisa o período, indicando que as contribuições dos judeus vienenses na medicina, filosofia, música, literatura e jornalismo foram impressionantes. Era a reafirmação das palavras do escritor vienense, Stefan Zweig, ao dizer que "...90% daquilo que o mundo celebra como cultura vienense do século 19 foi promovido, alimentado ou criado pelos judeus da cidade". Foram nomes como Sigmund Freud, o pai da psicanálise; Ludwig Wittgenstein, filósofo; os escritores Karl Kraus, Franz Kafka e Hugo von Hofmannsthal; os compositores Gustav Mahler e Arnold Schönberg, que ajudaram a constituir essa "modernidade vienense".
É importante, ainda, destacar que a entrada de Viena no modernismo artístico se deu graças a inúmeros críticos de arte, colecionadores e mecenas judeus. Era nos salões da culta e abastada burguesia judaica - e não entre os membros da aristocracia - que os artistas da vanguarda achavam o foro ideal para lançar idéias novas; também era onde arquitetos da art nouveau encontravam seus clientes. O salon de Berta Zuckerkandl, filha do famoso jornalista Moritz Szeps e esposa de igualmente renomado médico, por exemplo, era ponto de encontro da intelectualidade de vanguarda. Foi nesse salão que nasceu a "Secessão de Viena", movimento de protesto contra as tradicionais normas artísticas.
Um provocativo romance, The City Without Jews: A Novel of Our Time, escrito em 1922 por Hugo Bettauer, que se convertera ao protestantismo, pode-nos dar uma idéia da importância dos judeus, na cidade, e os sentimentos da população a seu respeito. No romance, Bettauer imagina o que aconteceria em Viena se fosse aprovada a expulsão de "elementos indesejáveis", isto é, dos judeus. O autor afirma que decidiu escrever a sátira após ter lido numa parede a pichação "Hinaus mit den Juden!" (Fora, aos judeus!).
No romance, quando todos os judeus são expulsos, inclusive os convertidos, "pois ninguém confiava neles", Viena volta a ser uma cidade provinciana. Sem o patrocínio de seus mecenas, fecham-se salões de arte e bibliotecas. Editoras e jornais, também. A produção teatral entra em decadência e não há mais operetas, pois não havia mais judeus para compor as músicas e os livretos. Os cafés onde se reuniam os escritores estão desertos e os artistas perderam seus clientes. Até as lojas de alta costura não têm mais a quem vender, pois as elegantes judias ditavam a moda. Mesmo os políticos sentem sua falta, pois não têm mais a quem culpar pelos males da Áustria. Quando a cidade chega ao fundo do poço e todos percebem que não há outra saída, a não ser, chamar os judeus de volta. Os judeus retornam e toda a população os recebe com festas.
A elite cultural judaica
Após a emancipação, abolidas as restrições em relação ao número de judeus que podiam viver em Viena, milhares de imigrantes de outras partes do Império e da Europa Oriental lá se estabelecem. Em 1869, já havia 40 mil na cidade e, em 1890, somavam 119 mil, representando 12% da população. Vinte anos mais tarde, o número chegara a 175 mil, calculando-se 200 mil em 1938. A emancipação também provocara mudanças drásticas na estrutura social e profissional. O acesso às universidades fez com que crescesse seu número nas profissões liberais. Em 1880, um terço dos estudantes universitários de Viena eram judeus, sendo que nos cursos de direito, filosofia e medicina a proporção era bem mais alta, pois estas eram as únicas profissões, além do jornalismo, abertas aos que queriam uma carreira sem, no entanto, se converter. Na Escola de Medicina de Viena, por exemplo, em 1890, 48% dos estudantes eram judeus.
No final do século 19, a aculturação e assimilação de grande parte da comunidade judaica atingiu proporções sem igual. Desde o Iluminismo e, mais ainda, após a emancipação, haviam mudado sua aparência, adotando língua, costumes e filosofia alemãs, na tentativa de deixarem de ser vistos como "forasteiros", pois Viena era na época uma cidade alemã. Os membros da burguesia judaica procuravam assimilar-se através da cultura, numa cidade que cultuava a música, as belas-letras e a literatura. Sabiam que enquanto que a riqueza, por si só, nem sempre os igualava socialmente, a fama e a cultura sempre o conseguiam. A alta burguesia impedia, às vezes, o acesso de judeus muito abastados a seus elegantes salões, mas jamais fechou as portas a um artista ou cientista de renome.
É inegável que um judeu, mesmo quando pretendia afastar-se de suas raízes, continuava com o seu judaísmo refletido em sua vida, modo de pensar e obra. O próprio Freud, ao tentar explicar por que trilhou caminhos da mente humana até então desconhecidos, escreveu: "Pelo fato de ser judeu, encontrei-me livre de vários preconceitos que restringiam outras pessoas no uso de seu intelecto".
Buscando tornar o judaísmo "mais aceitável" aos olhos dos outros, a aculturada burguesia judaica procurou, também, "ocidentalizar" os serviços religiosos, adequando-os a conceitos estéticos ocidentais e cristãos. Assim, abandonaram os rituais ou tradições milenares por considerá-los por demais antiquados ou orientais.
Contudo, ainda não era o suficiente. Se a opressão legal desaparecera por força de lei, permanecera o desprezo em relação aos judeus, assim como os impedimentos não-oficiais que lhes negavam um lugar pleno na sociedade. Havia inúmeras situações e posições aos quais só teriam acesso caso se convertessem. Foi esta a opção escolhida por 9 mil judeus, entre os anos de 1868 e 1903, ao abraçarem o catolicismo na vã esperança de ser parte de um mundo que, de outra forma, estava fechado a eles.
Mas, na virada do século 19 tornou-se cada vez mais evidente que haviam falhado todos os esforços. Pelo contrário, a "invasão" judaica na cultura local despertara intensos ressentimentos. Se, entre as classes mais baixas, o ódio aos judeus ainda era de cunho religioso, com ranço medieval, à medida que se subisse na escala social, percebia-se germinar um novo anti-semitismo - secular, racial e cultural.
A rejeição tornou-se ainda mais intensa quando Karl Lueger vence as eleições municipais, em 1895. Subiam ao poder os anti-semitas, com sua virulenta rejeição a tudo que era judaico. Uma geração que tinha tudo para se tornar uma elite cultural viu-se, de repente, diante de um impasse. Tinham deixado seu passado para trás; o presente lhes fora fechado e só o futuro, acreditavam erroneamente, estava aberto para eles. O caminho traçado por esta elite foi refugiar-se num mundo alternativo, confrontando a cultura dominante com a sua própria.
Infelizmente, os judeus acreditavam que seu mundo alternativo era uma realidade. Este erro custaria à vida de milhões de nossos irmãos.
Outros, como o filósofo Max Nordau e Theodor Herzl, renomado jornalista vienense e pai do sionismo, entenderam, diante do inexorável crescimento do anti-semitismo, que a solução não estava na assimilação, tampouco na intelectualidade que haviam criado para si. Só havia um caminho, a seu ver, para que os judeus pudessem viver em segurança: a criação de um Lar Nacional Judaico.
Alguns nomes
Tantas são as personalidades judaicas na Viena do fin-de-siècle que somente podemos mencionar algumas das mais conhecidas.
Entre os juristas está Hans Kelsen, principal representante da chamada Escola Positivista do Direito. No campo da filosofia, além de Ludwig Wittgenstein, também viveram em Viena, nesse período, Martin Buber, Karl Popper e Josef Popper-Linkeus.
A maioria dos médicos da cidade eram judeus. Aliás, o renome da Escola de Medicina de Viena se deve, em grande parte, ao trabalho e às realizações de vários deles, dois dos quais - Robert Bárány (1914) e Otto Loewi (1936) - receberam o Prêmio de Nobel de Medicina. A psicanálise nasceu com Sigmund Freud, sendo judeus praticamente todos os membros da Sociedade de Psicanálise, fundada em 1906.
Entre eles, destaca-se Alfred Adler, criador da corrente conhecida como "Psicologia do Indivíduo".
Nas ciências, sobressaem Siegfried Marcus, inventor do automóvel; na Física, Lise Meitner, que descobriu a fissão nuclear; Wolfgang Pauli (Nobel de 1945) e Felix Ehrenhaft; o bioquímico Max F. Perutz (Nobel de 1962); o botânico Julius von Wiesner; os químicos Fritz Feigl, que viveu no Rio de Janeiro; Leo Grünhut; Edmund von Lippmann e Otto von Fürth, além do astrônomo Samuel Oppenheim, entre tantos outros.
No campo da literatura, predominavam as personalidades judaicas, principalmente entre o círculo de escritores conhecido como Jovem Viena (Jung Wien), cuja sede era o Griensteidl Café. Além dos mencionados acima, entre os escritores destacam-se Stefan Zweig (que viveu e morreu em Petrópolis, RJ, em 1942), Franz Kafka, Elias Canetti, Arthur Schnitzler, Hermann Bahr, Hugo von Hofmannsthal, Richard Beer-Hofmann, Peter Altenberg, Karl Kraus, Jakob Wassermann, Alfred Polgar, Franz Werfel, Friedrich Torberg, Hans Weigel, Fritz Hochwälder, Josef Roth, Felix Salten, Hilde Spiel.
A imprensa liberal de Viena contava com expoentes judeus, assim como todos os maiores jornais, entre os quais o Neue Freie Press, considerado o The Times da Europa Central. Podemos citar nomes de jornalistas famosos como Egon Friedell, Karl Ausch, Friedrich Austerlitz e Anton Kuh.
Em Viena, a música era considerada a principal arte e os judeus compartilhavam desta paixão. Mais da terça parte dos estudantes nos conservatórios da cidade eram judeus. Como vimos acima, dois compositores foram os principais responsáveis por revolucionar o mundo musical. Gustav Mahler, considerado um dos maiores de seu tempo, converteu-se para poder ser Kappellmeister da Ópera da Corte de Viena. Sua música, entre o romântico e o moderno, e seu legado exerceram grande influência sobre Arnold Schönberg. Para todos aqueles que detestavam as inovações musicais de Mahler, sua conversão, ao invés de apagar o seu "estigma judaico", atraiu ainda mais ressentimento sobre ele. Sua esposa uma vez escreveu que Mahler tinha consciência de que "as pessoas não se esqueceriam que ele era judeu... nem ele tampouco queria que isto fosse esquecido". A história de Arnold Schönberg é diferente, pois apesar de nascer judeu, foi criado como católico, convertendo-se ao protestantismo aos 18 anos. Em 1933 retornou ao judaísmo. Na época, as pessoas se questionavam se seria o caso de deixar a capital da música européia nas mãos de judeus! Outros compositores famosos foram Egon Wellesz, Erich Korngold, Alexander Zemlinsky, Oscar Straus, Emmerich Kalmán, Leo Fall e Edmund Edmund Eysler.
Diante de tantos nomes, a inevitável conclusão de Steven Beller em seu livro, compatível com a de outros historiadores, é que os intelectuais judeus foram os principais responsáveis por fazer de Viena um dos centros culturais mais dinâmicos e criativos da época.
A força do ódio, no entanto, foi maior do que a do intelecto. No dia 12 de março de 1938, os nazistas marcharam sobre Viena sob as palmas de uma população que exultava. Violências anti-semitas espontâneas se tornaram uma constante. Rapidamente os judeus perderam direitos e liberdades. Entre os 200 mil judeus de Viena, cerca de 130 mil deixaram a Áustria, fugindo do nazismo. O próprio Freud, já velho e doente, depois de ter a filha presa pela Gestapo, decidiu que chegara a hora de partir. Como ele, centenas dos que haviam feito da cidade um centro de cultura deixaram o país. Foi o melancólico fim de uma grande era.